quarta-feira, 25 de junho de 2008

Uma crítica a "O Pastoreio do Boi"





DEZ PASSOS POÉTICOS EM BUSCA DO VÁCUO E DA PLENITUDE

Por Barbosa da Silva*


Como falar de algo que transcende as categorias do pensamento, que ultrapassa nossos sentidos e percepções comuns do mundo? De algo que contraria qualquer discurso lógico-racional e, mais que isso, esgota as palavras e esvazia o nosso inquieto pensamento? Sem dúvidas, se se quiser utilizar palavras para alcançar esse algo, a melhor maneira será através da poesia. No entanto, paradoxalmente, prosarei, num breve comentário sobre a Poesia em um poema de Márcio Simões, tentando explicitar seu caráter de sabedoria intuitiva e como uma das práticas mais genuínas de iluminação.

O Pastoreio do Boi, poema de Márcio Simões sobre uma parábola ZEN, é obra de harmonia sutil, de intuição prájnica, que surge como uma ação natural e espontânea. Poema de ruptura e meditação, re-ligação e alta percepção. Expressa e reflete a iluminação através de dez disciplinados passos. Processos da consciência – transformações psicológicas numa gradação que exige disciplina e vontade, força de espírito para o autoconhecimento e atenção permanente, coisas a que o pensamento oriental e também os verdadeiros poetas estão incondicionalmente afeitos. A iluminação aqui não é algo para se alcançar em outras vidas ou após longos períodos de renúncias, orações e mendicância ou isolando-se do mundo e das pessoas em montanhas ou mosteiros, por exemplo. A sabedoria transcendental do Zen não nos aparta do mundo, ao contrário, é a ação no cotidiano, é uma “atenção desperta”. É a ‘simples’ atenção a todo instante, é fazer tudo dando de si, sempre, o preciso. Alcançar um mais elevado estado de consciência sem afastar-se das questões do mundo. Pois, ela (a iluminação) é também o reconhecimento e a afirmação de que nós somos mais que unidades isoladas no espaço, individualidades que se unem apenas por afeto ou compreensão, nós somos e fazemos parte de um processo infinito dentro da dinâmica da vida, que une tempo e espaço, matéria e vazio. Eis a experiência Mística, espiritual, ou como chamam no Oriente, samadhi e satori.

Com um tão humano propósito, esse poema de forma concisa (com suas alternâncias de palavras e silêncios entremeados, sua intuitiva forma poética, sua sutileza e perenidade de ritmos de meditação), surge como exercícios de harmonização e re-ligação do espírito, concebendo e refletindo e transmitindo a Poesia de tal maneira que ela flui ativa, sem resistência e passividade fora de medidas naturais. Ser todo o processo e ter consciência dele. Ou ser consciência nele.

Mente em fluxo constante seguindo para o desapego e desfazendo obstáculos para o livre espírito. O poema quer levar a percepção a deixar de se identificar exclusivamente com qualquer coisa que seja. E isso leva a uma mudança radical e duradoura de consciência, a qual convencionaram chamar iluminação ou liberação, e o poeta chama a atenção desperta. O desprendimento dos esquemas “pré-moldados” da mente. E é preciso certa disciplina para atingir este estado de fluidez e perceber a permanência da verdadeira natureza, a origem.

Então, é esse o sentido do encontro definitivo, consigo mesmo, com o boi, com a mente-espírito. A mente livre participando/criando os eventos do/no mundo. É a partilha com a experiência do outro. É o ser a si e o alheio ser. É saber que tudo que vemos e tudo que pensamos, criamos.

Cada passo desse poema é um dedicado exercício na intenção de achar-se e desprender-se de si, a fim de perceber e atuar no estado alto da consciência, onde não há dualidades, onde não há separação. Pois permite perceber-se simultaneamente (n)a totalidade (una, indivisível em sua essência, o absoluto, o Tao, a consciência invisível e universal) e a individualidade (a multiplicidade, os manifestados, a realidade relativa, o imprevisível, os átomos, a transitoriedade). Aí cessam os conflitos e brotam atos genuínos no cotidiano.

O poema parte em busca de si, do boi da mente, da realidade última e anterior a tudo, a qual não tem nome nem forma. Começa a busca e mesmo sem saber já se trilha o caminho. É como procurar o boi estando montado nele. Vir ao mundo é o começo da busca, é o primeiro e – involuntário? – passo. Esse – primeiro? – passo torna-se o primeiro obstáculo para o ‘ver’. Nossa própria descida (queda) encerra-nos no mistério?

Ensina a sabedoria esotérica: “só há a procurar o que já se encontrou”. Mesmo assim é preciso seguir por todos os caminhos e atalhos. E ainda que em nenhum deles esteja ou seja o desejado, lá estará e será ele por todos os caminhos e atalhos... Devemos seguir, pois é preciso perder-se para poder achar-se.

E lembro-me ainda de umas palavras do poeta Novalis: “a compreender-nos totalmente nós não chegaremos nunca, mas podemos e iremos, muito mais que compreender”.

Eis o aniquilamento das necessidades inferiores. Eis o despertar para as mutações da vida diária e do eterno presente fora dos condicionamentos homogêneos de estado de consciência, impostos, exigidos pela sociedade dita civilizada, pelos poderes instituídos e pelas próprias forças advindas do inconsciente e mesmo do consciente coletivo. O poeta, como o verdadeiro religioso e mago, médico de si mesmo, cura-se com palavras e com silêncios, e não aceita nenhuma forma de governo, ele destrincha-se dos emaranhados e complexos das correrias e dos objetivos alienados de nossa atualidade, em defesa da plenitude da vida simples, da verdadeira fraternidade de tudo, do resgate das genuínas formas da vida, a retomada total do espírito. É um pouco como voltar a ser criança: não pela inocência ou pela falta de responsabilidade comuns, mas pelo interesse por tudo e a atenção livre de condicionamentos quaisquer que sejam. Amizade e amor verdadeiros a tudo e todos e ao nada de onde brotam os mais puros atos e as mais puras travessuras, palavras e coisas.




*Barbosa da Silva é poeta


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